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14 agosto 2012

AQUELE QUE A JUSTIÇA FACILITOU A FUGA DANDO PASSAPORTE, LEMBRAM?

CRISTIANE SEGATTO  Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato é cristianes@edglobo. (Foto: ÉPOCA)

As revelações da bióloga Soraya 


e do médico Vicente, 


filhos de Roger Abdelmassih

CRISTIANE SEGATTO
Onde está Roger Abdelmassih? O Brasil inteiro gostaria de ver essa pergunta respondida. Condenado a 278 anos de prisão por crimes sexuais contra 39 pacientes, o ex-médico está foragido desde janeiro de 2011. Gostaria de saber onde ele anda, mas minha curiosidade sempre foi além. Desde que Roger desapareceu, me perguntava como estaria vivendo a família. O que o escândalo teria provocado na vida dos filhos e dos netos? O que significa carregar o sobrenome Abdelmassih? Como é viver diante de um constante julgamento social por descender de um foragido da Justiça?
Nas últimas semanas, pude ver essas perguntas respondidas. Numa longa entrevista, a bióloga Soraya e o médico Vicente, filhos de Roger que trabalhavam com ele na clínica, declararam muito mais do que esperava ouvir. Os melhores momentos estão na edição impressa de ÉPOCA desta semana. Publico aqui outros detalhes que não estarão nas bancas.
Soraya, 44 anos, e Vicente, 43 anos, são filhos da segunda mulher de Roger. Foram criados por ele e adotados quando já eram adultos. Trabalharam para o pai (“éramos tratados como funcionários”, diz Soraya) desde o tempo em que Roger tinha uma clínica modesta, apenas para tratar infertilidade masculina, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio.
A filha era secretária. Só mais tarde estudaria biologia e se tornaria uma peça central no laboratório da clínica de reprodução humana.Vicente foi o responsável por várias inovações adotadas por Roger. Eles dizem que nunca receberam o devido reconhecimento do pai. 
Depois do escândalo, tentam reconstruir a carreira na clínica Embryo Fetus, do especialista em medicina fetal Sang Cha. Trabalham na Avenida Brasil, a poucos metros do casarão imponente que foi palco de um dos mais sórdidos episódios da história da medicina brasileira.
Eles dizem que metade das clientes veio da antiga clínica porque confiam neles, mas o movimento caiu expressivamente. Na clínica de Roger, faziam 100 ciclos de fertilização por mês. Agora, fazem 15. Recomeçar não está sendo fácil. 
O escândalo
Soraya: O que aconteceu foi uma decepção muito grande. Pessoalmente, familiarmente, profissionalmente. Cada vez que sai uma notícia, parece que estão nos esfaqueando. Os netos o idolatravam e, de repente, viram isso tudo. Eu e meus colegas nunca vimos nada que sugerisse abuso ou estupro. Às vezes eram dez pessoas trabalhando na sala onde ficava a paciente. Mas se tanta gente o acusa de tanta coisa, não posso acreditar que nada aconteceu. Minha decepção é pensar que ele fez tudo aquilo no lugar onde eu e meu irmão dávamos nosso sangue. 
Soraya: Quando uma bomba é publicada fico chateada. A cada notícia, exibem todo o histórico dele: estuprador, ex-médico. A gente encontra forças e vai levando. Nossa preocupação maior é com os filhos. 
Vicente: Se meu pai fez aquilo tudo, tem que pagar. Vai ficar foragido até quando? Falei com ele a última vez no Natal de 2010. Disse pra ele não fazer nenhuma loucura. Não concordo com a fuga. Ele deveria se entregar e seguir o caminho dos recursos. Fazer o que a lei manda.
O pai
Soraya: Nunca pude bater nas costas dele e dizer: “E aí, pai? Tudo bem?”. Havia sempre um obstáculo. Era sempre tenso. Meu relacionamento com ele nunca foi de filha e pai. Sempre foi de funcionária e patrão. De certa forma, tudo que aconteceu foi uma libertação para mim. Se o escândalo não tivesse me deixado numa situação financeira tão difícil...
Soraya: Depois que tudo aconteceu, ele disse que já havia feito muito por nós. Disse que tinha pago escola, nos dado educação. Como se isso não fosse obrigação de qualquer pai... Como mãe, faço tudo pelos meus filhos.
Vicente: A lei da vida é essa: o homem casa com a mulher, tem os filhos e trabalha para educá-los. Mas meu pai achava que fez algo demais. É inacreditável.
Soraya: Meu pai tratava mal todos os filhos. Inclusive minhas irmãs, que são filhas biológicas dele (Juliana, Mirela e Karime são filhas de Roger com a mãe de Soraya e Vicente, Sonia Abdelmassih). A minha situação era mais complicada porque fui cobaia. Era a primeira. Quando minha mãe se casou com ele eu já tinha 10 anos. Tinha que ver meu pai biológico sem que o Roger soubesse. Se soubesse, ficava bravo. Era um martírio. Minha mãe ficava sob fogo cruzado. Minha vida era um inferno por causa da possessão, da rigidez dele.
Soraya: Quando meu pai ligava para saber da gente, o Roger fazia cara feia. Começava uma briga no jantar. Roger era um homem que, de repente, tinha uma filha de 10 anos nas mãos e nunca soube ser pai.
Soraya: Minha mãe ficava desesperada. Queria que o casamento desse certo. Amava o Roger. No almoço e no jantar, sempre tinha alguém ouvindo sermão. Mesmo depois de casada. Saíamos para jantar, e ele pegava no meu pé ou no do Vicente ou no dos meus ex-maridos. Sempre tinha um climão.
A mãe
Soraya: Minha mãe morreu em agosto de 2008, depois de sete anos de luta contra um câncer de mama. Foi um sofrimento muito grande. A metástase surgiu em 2005. Atingiu fígado, osso, pulmão. No final, o corpo inteiro. A primeira denúncia contra meu pai apareceu no jornal em janeiro de 2009. Em agosto, ele foi preso.
Vicente: Graças a Deus, minha mãe não viu nada disso. Ela sofreu por outras coisas, mas não por isso. 
Soraya: Minha mãe era uma mulher fenomenal. Uma mulher simples, de coração bom. Sempre batalhou. Era uma leoa para os filhos. Em casa, sempre havia um climão. Meu pai brigava com os filhos por qualquer coisa. Ela ficava no meio, tentando nos proteger. Ela sabia que eu trabalhava com ele, tomava bronca o dia inteiro, e depois ainda tinha que sentar com ele no almoço de domingo.
O comportamento
Soraya: Eu e meu pai vivíamos tendo atrito no trabalho. Ele não falava palavrão. Era mais pesado que isso. Fazia caretas, mordia os lábios quando estava com raiva. Isso me arrebentava. Tinha mania de aparecer. Adorava isso. Eu e o Vicente não precisamos disso. Aqui na nova clínica o que interessa é a paciente ficar satisfeita e contar para as outras. O que vale é o boca a boca, o resultado da paciente. O Vicente é o oposto de meu pai. Odeia aparecer. 
Soraya: Do mesmo jeito que muita gente se pergunta “como é que pode?”, a gente também se pergunta. Quando minha mãe faleceu, aí mudou tudo. Tinha acabado de morrer a mulher que era o vínculo de tudo. Nós e os netos tivemos que aceitar a nova mulher dele (Roger tem um casal de gêmeos de um ano com a procuradora Larissa Sacco) dentro da casa da minha mãe. Pouquíssimo tempo depois da morte dela.
Deve ser amor mesmo porque dinheiro agora ele não tem.
A ostentação
Soraya: O que mais o prejudicou foi a arrogância. As pacientes o descreviam como um cara arrogante. Ele era assim. Brigava com todo mundo, ostentava. Hoje não frequento mais os restaurantes que costumávamos frequentar, mas já vi maitres e garçons falando dele e chorando. Dava muitas gorjetas. Não sei por que fazia isso. Acho que pensava que assim seria bem tratado nos lugares. 
Soraya: Para algumas pacientes, ele fazia alguns ciclos de inseminação de graça. O Roger ajudou um cadeirante que pedia dinheiro perto da clínica a comprar uma casa. Deve ter dado uns R$ 10 mil para o rapaz terminar de construir ou pagar uma casinha. Para ele, é Deus no céu e o Roger na Terra. É estranho, mas muita gente acha que ele foi um homem bom.
A clínica
Soraya: Meu pai sempre nos tratou como funcionários. Exigia muito. Cobrava mais da gente que dos outros empregados. Nunca tivemos regalia alguma. Ele nunca pensou na clínica como uma empresa familiar. Nunca pensou em fazer sucessores. Isso o matava.
Vicente: Comecei a fazer a transferência de embrião guiada por ultrasson. O Roger não fazia assim. Hoje todo mundo faz. Os meus resultados eram melhores. Isso depois de quatro anos que estava trabalhando. Antes ele não me deixava fazer nada. Eu só podia fazer ultrassom nas pacientes. Os médicos da área acham que o Roger não queria que ninguém crescesse.
Soraya: O Roger não queria que ninguém brilhasse mais que ele. Esse era o medo.
Vicente: Tive minha própria clínica durante um tempo. Queria sair da barra da saia dele. Resolvi montar uma clínica com a mesma capacidade técnica, mas com preços mais baixos, para outro público. O Roger dizia para eu ficar na clínica dele até o meio-dia e depois ir para a minha. Concordei, mas nunca conseguia sair nessa hora. Chegava na minha clínica às 18 horas. Ele me chamava para a clínica dele quando eu estava na minha.
Vicente: O Roger poderia ter parado de trabalhar cinco anos antes. Tinha outros médicos lá capazes de tocar o negócio. Mas não. Era centralizador. Não deixava ninguém crescer.
O dinheiro
Soraya: Nunca soubemos nada sobre o dinheiro dele. Ele não contava nada para os filhos. Tinha aquele “x” no final do mês que era o nosso salário. Ganhávamos um pouco mais que os salários do mercado. Faz tempo que não falamos com os advogados do meu pai. Não sei quem está pagando. Nós não somos.
Soraya: É tão estranho um filho não saber nada sobre a vida do pai, sobre os bens que ele têm. Não sabemos. Nunca nos deixou participar de nada. Ele escondia e se protegia inclusive da gente. Sei que a fazenda ele perdeu. O imóvel da clínica era alugado. Sobrou só a casa, única coisa que minha mãe deixou para os cinco filhos.
Vicente: A intimidade entre pai e filhos faltou. Muita gente acha que ele deve ter muito dinheiro no Exterior. Nunca fiquei sabendo de nada.
Soraya: Tinha um barco e perdeu. O que ele tinha ele perdeu.
Vicente: Nem o barco era dele. Ele pagava por mês. Só a partir de 2005 teve uma casa própria. Antes sempre foi alugada. Quando eu dizia que queria comprar um apartamento, ele respondeu que eu estava maluco. Sempre achou mais vantajoso alugar as coisas. Comprei um apartamento de 100 metros quadrados na Vila Olímpia. Iam começar a construir e ia pagar em 30 meses. Dei a notícia num jantar. Ele achou um absurdo. Depois disso, minha mãe o forçou a dar entrada num apartamento para cada filha e assumir as prestações do meu. 
O caos financeiro
Vicente: Quando as denúncias começaram, ele começou a ficar cheio de dívidas. Todas as dívidas pequenas somadas, sem a receita da clínica, ficaram volumosas e ele começou a pedir os apartamentos das filhas para pagá-las. Todos os apartamentos foram consumidos pelas dívidas, menos o meu. Paguei um tempo e vendi o imóvel antes delas. 
Soraya: Tudo foi muito custoso na nossa vida. Com a separação da minha mãe do primeiro marido (o ator Marco Ghilardi, pai de Soraya e Vicente, morreu de infarto aos 43 anos), às vezes faltava até o que comer em casa. Eu e o Vi batalhamos muito e, por isso, somos muito unidos. 
Soraya: Sou separada. Tive dois casamentos. Meus ex-maridos são ótimos pais. Eles ajudam, pagam escola, são boas pessoas. Moro num apartamento de 200 metros no Real Parque com os quatro filhos. Estou pagando financiamento de 30 anos com grande dificuldade. Estar recomeçando aqui na clínica do Dr. Sang, sem pressão, é muito bom.
Soraya: Quem acha que pode cobrar dívidas da gente pode fazer o que quiser. Pode procurar em banco, em qualquer coisa que eu tenha. Não tem uma madrugada que não acordo pensando como vou fazer para pagar minhas contas no dia seguinte.
Soraya: Além de trabalhar aqui, eu, minha cunhada e minha filha mais velha montamos uma confecção. Vendemos camiseta, homewear. É só no boca a boca, sem loja. A gente deixa uma mala com as roupas e depois pega.
Enquanto isso, o delegado Waldomiro Milanesi, da Divisão de Capturas da Polícia Civil, reclama da falta de colaboração da sociedade nas investigações sobre o paradeiro de Roger. “Desde que assumi a divisão, há um ano e meio, recebi apenas uma denúncia sobre ele. Dos outros foragidos, foram várias. Vivemos numa sociedade de castas. Os ricos que conviviam com ele não colaboram”, diz.
Milanesi não acredita que Roger esteja no Brasil. “Só se fosse muito ingênuo”, diz. E duvida que os filhos não saibam onde está o pai. Ainda assim, acha que interrogá-los seria perda de tempo. “Abrigar um pai procurado pela Justiça não é crime. Se eles mentirem para a polícia, isso não terá consequência alguma”.
O delegado pede a divulgação de imagens preparadas pela polícia sobre a possível aparência atual de Roger. Qualquer pista, suspeita, denúncia pode ser informada pelo emailprocurados@policiacivil.sp.gov.br.
Até quando Roger Abdelmassih será o pai ausente mais procurado do Brasil?
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)
O que você achou? Conte pra gente. Queremos ouvir sua opinião. 

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