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01 maio 2015

SANDRO VAIA // O GLOBO

Venezuela, ditadura relativa

As ditaduras, ensina a História, cavam a sua própria sepultura, mesmo quando fantasiadas de democracias relativas

Um mês depois de fechar o Congresso Nacional, em 1977, o então presidente Geisel deu uma entrevista à imprensa francesa explicando que o Brasil vivia uma espécie de “democracia relativa”.
Dizia o general que não podíamos ter uma democracia igual à dos ingleses ou dos franceses porque o nosso nível de desenvolvimento social e econômico não era igual ao daqueles países.
Nunca ficamos sabendo as reações dos franceses ao estranho senso de humor do general de plantão, mas a democracia relativa de Geisel passou para a história das aberrações que o pensamento autocrático é capaz de produzir.
Convencionou-se, no imaginário popular, baratear um pouco a discussão sobre a essência da democracia adotando o senso comum de que eleição basta para legitimar qualquer poder.
Outros componentes da legítima e clássica democracia representativa, como a plena liberdade de organização, a absoluta independência entre os poderes, o pluripartidarismo, a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão, a solidez das instituições, passam às vezes como acessórios ou penduricalhos da eleição- transformada em um fim em si mesmo.
O surto de “democracias bolivarianas” que tomou o subcontinente a partir dos delírios de grandeza do coronel Hugo Chávez, na Venezuela, mostra como a relativização da democracia consegue adaptá-la a padrões autocráticos a partir do voto, usando-o como álibi para justificar as mais grosseiras falsificações da verdadeira vontade popular
Existem várias formas de “relativizar" a democracia. Geisel fechou o Congresso por um tempo e depois inventou os senadores biônicos, que ele mesmo nomeava para garantir a maioria para o seu governo. O tosco Nicolás Maduro segue os ensinamentos de Chávez e relativiza o eleitor. Veja a notícia desta semana:
"A maioria chavista da Assembleia Nacional venezuelana aprovou na quinta-feira (23) um projeto de lei que permitirá que o conselho eleitoral local diminua o número de deputados eleitos em zonas dominadas pela oposição. A manobra pode ajudar o governo de Nicolás Maduro a amenizar uma forte derrota nas próximas eleições legislativas, que ainda não têm data marcada."
É bom que se esclareça que isso não é nenhuma novidade na Venezuela. Na eleição legislativa de 2010, o governo relativizou tanto o peso dos votos, que conseguiu 96 assentos na Assembleia Nacional com 5.451.000 votos e a oposição conseguiu 71 assentos com 5.843.000 votos. Ou seja: o governo conseguiu a maioria na Assembleia com 48,3% dos votos e a oposição, com 3 partidos, ficou em minoria com 51,7% dos votos.
Esses truques, no Brasil do general Geisel, eram chamados de “casuísmos”. Ou seja: o governo, com uma maioria forjada no parlamento, ia conseguindo aprovar medidas que lhe garantissem sempre a maioria, independente do resultado das urnas.
A imposição de padrões autocráticos independe da posição política de quem controla a máquina pública. Geisel e o governo militar toleravam um regime bipartidário, com uma oposição de fachada, até o momento em que a corda, esticada até seu limite, se rompeu e enterrou a ditadura.
A ditadura venezuelana, também disfarçada de democracia relativa, além de mergulhar o país numa crise econômica sem precedentes, provocada por sua total inépcia, vai esgotando os seus truques casuísticos, e apela até para a violência de leis que permitem atirar em manifestantes e para prisões ilegais de lideranças oposicionistas.
As ditaduras, ensina a História, cavam a sua própria sepultura, mesmo quando fantasiadas de democracias relativas.
Ditadura relativa (Foto: Mana Neyestani)
(Arte: Mana Neyestani)

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