10 abril 2012

Blog ANTOLOGIA DO ESQUECIMENTO (Henrique Manoel Bento Fialho)


O HOMEM DO BIGODE



O homem do bigode acordou meio assarapantado, a outra metade 
permanecia ensonada. Vinha o sarapanto de ter sido acordado por 
um pesadelo, ou assim parecia ter sido, que lhe causara 
um estranho prazer, manifestado por ligeira, mas inegável, erecção. 
Nesse sonho, o homem do bigode estava sentado numa sala de cinema 
a assistir à última sessão. Passavam Querelle, o filme de Fassbinder. 
O homem do bigode estava sentado ao lado de um rapaz que vira na 
fila da bilheteira. Pela forma como o rapaz, dos seus 16 ou 17 anos, 
colocava os pés no chão, cruzava as mãos uma sobre a outra e inclinava 
ligeiramente a cabeça, o homem do bigode percebeu que se tratava de 
um jovem gay. Lera em tempos um livro de Thomas Mann que não deixava 
dúvidas sobre a forma como os jovens gay colocam os pés no chão, 
é como se os colocassem no ar. E o homem do bigode, impelido por 
uma força que parecia instintiva, ou esteticamente irrefreável, não podia 
evitar imaginar aquele jovem dos seus 16 ou 17 anos com os pés no ar, 
com a cabeça ligeiramente inclinada sobre a almofada, com as mãos 
cruzadas sobre as suas costas. Depois acordou assarapantado. 
Ergueu-se do leito, dirigiu-se ao espelho do quarto, olhou-se no espelho 
e verificou uma ligeira erecção. Seria de mijo? Seria de desejo? O 
homem do bigode sentiu-se confundido. De mijo não seria certamente 
e o desejo não chega assim. Então perguntou-se: e agora, serei gay
Não podia ser. É verdade que tivera aquele sonho, não o podia negar 
aos olhos do Senhor embora o pudesse fazer perante qualquer ser humano. 
Era verdade também, embora estivesse fortemente recalcado no inconsciente 
do homem do bigode, que quando fora jovem, na puberdade, masturbara-se 
enfiando o dedo indicador no recto. Não o podia negar aos olhos do Senhor, 
embora tivesse tentado negá-lo perante si próprio à passagem dos anos. 
O homem do bigode cruzava-se todos os dias na rua com “casais” do 
mesmo sexo, frequentava lugares indicados nos guias de turismo 
homossexual, era amigo de várias figuras públicas que propagandeavam 
a sua condição assumindo-a publicamente, assim como um dia 
os pretos propagandearam a negritude ao assumirem que eram pretos, 
atraindo para as suas zonas obscuras gente branca e pura, caucasianos 
hereditária, social e culturalmente impolutos. Houve mesmo um tempo em 
que ser-se preto esteve na moda. As mulheres fechavam-se dias inteiros 
nos solários, os homens treinavam rimas e comportavam-se como macacos. 
Uma falta de gosto que só visto. Mas depois os tempos mudaram, as pessoas 
abriram os olhos, como agora fazia o homem do bigode, olharam-se ao 
espelho e perguntaram: serei preto? Não. Um homem é o que nasce, pensou 
o homem do bigode. E eu nasci hétero. Prova disso são os pêlos nas costas, 
nos ombros, no peito. Sou homem homem. Tenho bigode. Ainda que o 
mistério gay me atraia como o mistério da virgem, não posso tornar-me naquilo 
que não sou nem que amigos me influenciem ou o meio me pressione. Não 
posso ser gay só por ter tido um sonho gay, pensou de si para si o homem do 
bigode. E olhando-se de alto a baixo no espelho concluiu: só posso estar 
revoltado. Fosse Freud vivo, analisasse-me, diria apenas isto: é revolta 
reprimida. Esse sonho manifesta apenas um desejo ardente de libertação, 
uma revolta para com o mundo à espera de se soltar nem que seja pelo cu. 
Sim, reforçou perante si próprio o homem do bigode, sou um homem 
revoltado, um Camus de bigode imerso na angústia de toda uma vida 
a escrever baboseiras que jamais convencerão a Academia a atribuir-me 
o Nobel da Literatura para o qual nasci. O meu tio José sabe a criança 
revoltada que sempre existiu dentro de mim, revolta canalizada para um 
talento de tal modo incandescente que ninguém o vê. Ah, sim, eu podia 
exibir esta revolta, esta angústia, inclinando a cabeça, cruzando as mãos, 
colocando os pés no chão de certa maneira, mas não, recuso-me, a minha
 revolta é uma revolta metafísica, eu revolto-me sonhando e por isso só 
em sonhos eu sou gay, é esse o lugar da minha revolta, uma revolta onírica, 
eu desafio o mundo real com o meu mundo onírico, eu desafio-me a mim 
próprio, eu assumo-me não me assumindo, eu Pessoa que Vieira, eu 
sarapantado de saraiva, eu de raiva confundido, cu fodido, eu, os outros, 
mim, vós… E nesta confusão de sentimentos e já sem erecção alguma, 
o homem de bigode disse Basta! aos pensamentos. Foi tomar banho, vestiu 
umas roupas pretas de classe média e seguiu para a redacção do jornal 
onde trabalhava metendo os pés no chão de certa maneira.

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