CONSULTORIANDO
Depois de tantos anos de consultório particular, deve-se ter condições de prever, numa perspectiva certamente mais embasada, quase tudo o que se reserva aos inúmeros colegas iniciantes na profissão médica, no trato direto e pessoal com seus clientes.
Evidente que os primeiros contatos com pacientes sempre serão em enfermarias e ambulatórios, em hospitais-escola tipo Santas Casas, ou em serviços públicos, onde os níveis intelectual, social e cultural encontradiços serão quase invariavelmente muito humildes, como os donos das doenças ali encontradas...
Um trato direto com os pacientes, algo em que exista um evidente respeito mútuo na relação médico paciente, pois aí reside uma individualização desta relação, o diálogo, o entrosamento, a empatia, provocando o quanto mais possível o abrir-se e a definição dos problemas e apreensões daqueles que vem nos procurar... – pois este é o começo, quando o intercâmbio com os pacientes passa a ser algo personalizado. O médico e seu paciente frente a frente. Dois mundos desconhecidos que se aproximam. Um, o médico, que recebe, procurando captar e avaliar, desde o ingresso, o paciente na sala, o seu caminhar, sua postura, sinais de deformidade física, o olhar, o sorriso ou o recolhimento, o modo de se expressar, sentar, iniciar uma conversa preliminar. Seus característicos físicos, a maneira de vestir-se, tiques nervosos, tatuagens e cicatrizes visíveis, moléstias aparentes de pele, do tronco e abdômen; como respira, se anda com desembaraço ou com dificuldade, se vem só ou acompanhado, se se expressa espontaneamente ou necessita do auxílio de acompanhante, se fala mais alto do que o necessário, o que acontece muitas vezes com o paciente que vai perdendo a audição, quando parece ignorar nossas perguntas (mas na verdade não as está escutando) ou se se curva para frente para ouvir melhor, se apresenta depósitos de colesterol à volta das pálpebras, ou se tem os olhos muito protuberantes, se tem pterígio, lagoftalmia, desvio de septo nasal, ou qualquer outra patologia de face, calvície em graus variáveis, se pinta os cabelos, se usa peruca, se é tímido ou exageradamente extrovertido ou intimista; o tipo de mãos, dedos e unhas, tudo o que pudermos observar neste primeiro contato tem sua valia, ou pode vir a ter.
Sempre trará o paciente um misto de ansiedade, angústia, apreensão, medo, desconfiança e esperança e poderá ter dificuldades de se expressar, de ir direto ao ponto, de dar ao médico, um estranho, uma primeira e boa noção do que o trouxe ao consultório. Nem todos têm a facilidade de, na primeira entrevista, relaxar e relatar o que estão sentindo ou notando algo de anormal em seus organismos. Muitos pacientes, de tão preocupados, não conseguem de início colocar-nos o ou os motivos que os trouxeram ao consultório. Muitos por não entenderem o que se passa consigo mesmo, ou não saberem como se expressar corretamente, outros por amplificarem sintomas ou relatar aquilo que adveio talvez muito mais de sua imaginação e de seus temores, de permeio com o real, e outros que interpretam livremente sinais e sintomas, e como autodidatas que são, costumeiramente lançam mão de automedicação. Os hipocondríacos, aqui, ganham um fácil e compreensivo lugar de destaque.
Outros, porque têm acesso à mídia, notadamente a internet, já vem armados com opiniões e conceitos, cabendo a seu médico o ônus da prova da veracidade de seus novos conhecimentos...
Lembremo-nos de que o atendimento em consultório implica em um profundo exercício de paciência, de parte do médico. Não são poucas as vezes em que o paciente fala, fala, abstraindo dados mais esclarecedores, perde-se em divagações, traz-nos suas próprias interpretações e as dos familiares, envereda para doenças de amigos, foge da objetividade.
Por exemplo, “ficou doente” (quando? Há quanto tempo?) e “quando sentiu aquilo” (o quê, onde?) foi levado ao hospital e fez “exames” (que quase nunca traz consigo e muitas vezes ignora quais) e o doutor lhe receitou um “antibiótico” (“qual?”), às vezes é um antiinflamatório ou antiespasmódico) que, aliás, geralmente não tomou.
Quando o paciente nos procura, ele pode estar tão imerso em suas preocupações que simplesmente parece acreditar que por telepatia seu recado já nos foi ou será dado. Daí a falta de objetividade no seu relato. Um pedaço de Deus naquela figura, outrora aliás, de branco à sua frente. Nada mais é necessário.
Não é raro o paciente vir ao consultório por primeira vez e informar que fez uma bateria de exames há poucos dias... Apenas se esqueceu de traze-los à consulta. Outros trazem os exames da esposa ou da filha (“os envelopes eram iguais...”) ou chegaram a faze-los, mas não foram buscar os resultados: no fundo, eles esperam que nós tiremos nossos próprios coelhos da cartola...
Dentro de um início amistoso do relacionamento, indispensável, é preciso observar se o paciente é ou não um dispersivo, um evasivo. Claro que devemos incentiva-lo a falar, mas nunca permitir que emita um fluxo soterrante de informações, muitas delas duvidosas, porquê interpretativas e não relativas ao seu problema de saúde. Falar, claro, mas não deixa-lo desembestar à frente, ou nos perderemos em nosso raciocínio clínico. Certos pacientes precisam ser levados com perguntas diretas, muitas vezes interrompendo seu relato pouco esclarecedor para fixar ou esclarecer detalhes que realmente interessem na sua avaliação.
Muitas vezes, e isto acontece mais com idosos, há uma tendência em negar sintomas ou detalhes importantes, que eles consideram passíveis de leva-los a uma cirurgia. Procuram minimizar sintomas, negar dados, ao que um acompanhante preocupado, se estiver presente, logo intervirá, contradizendo-o, e isto quase sempre o irá deixar, aliás, bastante contrariado...
O paciente surdo-mudo já é um outro capítulo na rotina de um consultório. Em geral vem à consulta acompanhado de uma pessoa não deficiente física, que é versada na linguagem de gestos. E a sensação que temos é de estarmos sentados na primeira fila de um mini-teatro privado, enquanto ambos passam um para o outro os seus diálogos. Mas, sempre isto é preferível ao surdo-mudo que vem sozinho...Haja bloco e caneta!...Não fazer humor negro sugerindo que o nosso surdo-mudo venha sozinho e que seja também analfabeto...
Às vezes somos surpreendidos com a visita de um paciente que nos parece bastante idoso, mas ativo, desenvolto...Que vai sozinho ao consultório, como, aliás, vai a qualquer outro lugar...Que não admite acompanhantes, mas que logo se evidencia um ser confuso, desmemoriado, impossibilitado de reter a mínima informação ou explicação...Como agir da melhor forma, nestes casos?...Não é ocorrência rara, infelizmente. As prescrições dadas a este tipo devem ser caprichadas, em letra de fôrma, idem para os pedidos de exames complementares.
Outro aspecto profundamente perturbador da consulta acontece quando o paciente vem acompanhado de mais de um parente ou amigo, ou traz crianças pequenas consigo. Fica muito difícil para o profissional dar andamento à consulta, se os acompanhantes se comportam como se integrassem o elenco da Grande Família, ou quando as crianças, desejosas sempre de chamar a atenção, pululam no ambiente, sem admoestações de seus responsáveis, em geral mostrando as falhas de sua educação. Aí o médico se depara com a necessidade de repreender os rebentos, claro que sob a desaprovação tácita dos pais, que podem nada dizer, mas sua expressão discursa...e eis aí mais um cliente que nunca mais irá voltar a nós...Amém!...
A abordagem pessoal é muito importante, e na nossa opinião, há que ser feita de modo informal, armada de um sorriso amistoso e encorajador e um aperto de mãos que não lembre algo como geléia ou coisa pior. Embora o aperto de mãos seja um cumprimento até dispensável, na nossa cultura ele reflete aceitação, educação, boas vindas. Em certas especialidades, como Urologia, Dermatologia e Ginecologia, o aperto de mãos deveria até ser evitado no possível. É constrangedor para nós, médicos, apertar a mão de um paciente para ficar sabendo logo a seguir que ele nos veio por uma DST com secreção patogênica... É sabido que os pacientes, em geral, mesmo os de classe média, têm muito poucas noções de higiene e prevenção, ignoram que seja perigoso o manuseio das secreções sem imediata higienização...
Às vezes, até por timidez ou insegurança do médico, este primeiro contato se faz de modo formal, distante e frio. Impessoal, mesmo. Às vezes, o médico intimamente reprova o aspecto físico do paciente que ele acabou de receber; mas lembremo-nos que muitas vezes uma pessoa de aspecto limpo e cuidado pode se revelar uma pessoa vazia, sem princípios, desligada, indigna de figurar na série “Meu Tipo Inesquecível”, ao passo que alguém, até mesmo entrado em anos, desleixado na aparência, parecendo-nos um hippie e na verdade pode ser pessoa de grande beleza interior e estruturada socialmente...Devemos sempre ignorar nossa primeira impressão no contato inicial: estamos ainda conhecendo a CASCA social do paciente...
Na medida do possível, devemos ter o cuidado de fazer sentir ao paciente que ele é gente e nos preocupamos com ele e seus problemas. Maltratar o paciente, nunca, a menos que a coisa realmente descambe para um nível impossível de contornar. Lembremo-nos que há pacientes que se comportam de maneira arrogante e inamistosa na recepção e outra totalmente diversa no consultório, à nossa frente. Esquecem a pressa, a impaciência com os horários, as reclamações com que atarantaram as recepcionistas e nos chegam cheios de mesuras. Tudo o que querem é a nossa atenção.
Acontecem atritos ou atendimentos precários e desinteressados, em certos consultórios, quando o médico intimamente se revolta com a baixa remuneração dos convênios, e “descarrega” na figura dos clientes. Isto é claro, não deveria acontecer. Nossos clientes pagam e pagam caro pelos seus planos de saúde, não têm culpa de nada. É bom que tenhamos isto em mente, porquê assim nossa clientela só aumentará. E um dia nosso trabalho, até por força de um melhor desempenho de nossas instituições representativas de classe, será mais bem reconhecido e remunerado, conseqüentemente fazendo com que não haja mais necessidade de superlotar agendas e encurtar tempos de atendimento individual. Talvez assim todos os profissionais passem a receber seus pacientes com um aperto caloroso de mãos e um sorriso sincero de boas vindas...
O relacionamento entre pessoas estranhas entre si é por vezes muito difícil.
Daí não ser rara esta dificuldade de relacionamento entre médico / paciente.
Conseguir um bom approach é fundamental para ambos. A simpatia solta a língua, libera segredos, ataca inibições e a timidez de quem nos procura. Leva à empatia tão necessária.
À nossa frente, não um inimigo, mas um ser humano que vem a nós. Vem à nossa casa, então devemos recebe-lo bem.
Li certa vez um relato, via internet, no The New York Times, de que lá nos USA o tempo médio de um paciente começar a falar para ser logo interrompido pelo médico é de exatos 18 segundos...
Não conheço bem o Medicare, mas imagino que seja algo que certamente não deveria nunca ser implantado aqui no Brasil, e nisto nossas representatividades médicas devem estar sempre mais e mais ativas, a impedir que o seguro saúde e os rábulas de plantão transformem a Medicina em um pesadelo ainda maior, em trabalho escravo e de robôs.
18 segundos?... Mal dá tempo para uma apresentação correta em qualquer circunstância...
Todos os excessos de trabalho, sua massificação, conduzem à deterioração da qualidade do trabalho. Em qualquer profissão. Mormente na nossa, onde a matéria prima é o ser humano. Que merece respeito.
A interrupção certamente é um meio de o profissional experiente encurtar caminhos, pois muitas vezes ele já sabe do que se trata ou onde investigar logo nas primeiras frases proferidas pelo paciente. Claro que isto não quer dizer ouvir, examinar, diagnosticar e receitar numa única consulta. Como, aliás, a estrutura e a concepção monetarista dos convênios desejaria que fosse...Ignorando, ou pretendendo ignorar que existem fases determinadas dentro da chamada consulta médica, que são:
A consulta – (anamnese: história do paciente)
O exame físico.
O estabelecimento de uma ou mais hipóteses diagnósticas.
A comprovação complementar pelos vários meios disponíveis achados necessários pelos médicos.
A terapêutica sintomática.
A avaliação destes exames e a evolução clínica.
A instituição de uma terapêutica curativa.
A avaliação dos resultados obtidos.
Querer que tudo isto seja englobado numa única consulta mensal – imposição feita pelos convênios quase que em sua totalidade – mostra como nós, pacientes e médicos, somos desrespeitados e desconsiderados, e quão fracas são nossas defesas de consumidores do produto final muito bem cobrado e dos órgãos de classe profissionais, sucumbidos ante o poderio econômico do mercado de saúde. Aqui uma menção necessária para a classe política, que usa a Saúde como uma de suas plataformas eleitorais favoritas, conhece os problemas diários da classe médica, dos pacientes fugidos das filas do serviço público (que não funciona com muito poucas exceções), e nada faz. Não há vontade política para fazer reverter este quadro de penúria da classe médica, trabalhando (pasmem!...) sob uma tabela AMB de 1992...
Interessante, meu amigo.
ResponderExcluirMostrarei para minha jovem médica.