Mas não há lei
que garanta os direitos dos portadores de necessidades especiais? Há, claro.
Lindas, no papel
Em dezembro, a atleta Laís Souza regressou ao Brasil
após quase um ano de várias cirurgias e um caríssimo tratamento com
células-tronco no exterior. Em luta pela recuperação, depois do acidente que a
deixou tetraplégica enquanto treinava para representar o Brasil nos Jogos
Olímpicos de Inverno, deu uma entrevista na qual fez um comentário de passagem.
Provocada a falar sobre o que estava encontrando em seu regresso, manifestou o
que sua nova sensibilidade para a questão lhe revelava: que nossa sociedade não
se preocupa em acolher portadores de necessidades especiais. Talvez se
referisse a dificuldades para a mobilidade de cadeiras de rodas em calçadas ou
no cruzamento de ruas ou a outras questões de acessibilidade.
Se Laís tivesse chegado alguns dias antes, talvez
tivesse visto nos noticiários a cena de uma passageira cadeirante que precisou
se arrastar para subir as escadas e embarcar em um avião em Foz do Iguaçu, pois
não havia o equipamento necessário, obrigatório por lei. Esta semana, em
Campinas, outra passageira teve de esperar mais de uma hora para conseguir
desembarcar.
Certamente o comentário da atleta não estava ainda
reagindo ao que só se verificou alguns dias depois e é provável que as pessoas
que a cercam a tenham poupado disso: cartas de leitores aos jornais protestando
contra o fato de que o Congresso aprovou uma pensão vitalícia para ela, que lhe
permita sobreviver e custear parte do tratamento. O principal argumento era
alegar que o valor das próprias aposentadorias e pensões, dos leitores que
protestavam, está defasado e agora teriam que dividir o bolo com mais alguém.
Não chegaram a dizer que ela estava furando a fila, por ser jovem. Mas estava
implícita a crítica de que a moça não soubera esperar a vez. E a recusa a ver
um acidente de trabalho de uma atleta.
Nesse tipo de reação, impressiona-me ver que tudo se passa muito mais no terreno do ressentimento e da reclamação do que da reivindicação do respeito a direitos. Como se cada um, todo dia, se olhasse num espelho mágico para perguntar: “Espelho meu, espelho meu, existe alguém mais coitado do que eu?” E tivesse eliminado qualquer solidariedade ou empatia na hora de ouvir a resposta. Ninguém pensa que todos somos igualmente cidadãos e contribuintes, pagando impostos da mesma maneira. Pelo menos, os que não sonegamos.
Nesse tipo de reação, impressiona-me ver que tudo se passa muito mais no terreno do ressentimento e da reclamação do que da reivindicação do respeito a direitos. Como se cada um, todo dia, se olhasse num espelho mágico para perguntar: “Espelho meu, espelho meu, existe alguém mais coitado do que eu?” E tivesse eliminado qualquer solidariedade ou empatia na hora de ouvir a resposta. Ninguém pensa que todos somos igualmente cidadãos e contribuintes, pagando impostos da mesma maneira. Pelo menos, os que não sonegamos.
Um casal amigo, já aposentado, foi ver o lançamento de
um apartamento em Itaipava, pensando talvez em se mudar para um lugar menor, de
clima mais ameno. Bela planta, ótima localização, umas gracinhas de maquete com
miniaturas de árvores floridas. Mas algo lhes chamou a atenção na planta. As
portas pareciam estreitas demais. Se algum dia um dos dois viesse a precisar de
cadeira de rodas, podia ser difícil manobrar. Quiseram se certificar das
medidas exatas. O corretor não sabia informar. Nenhuma planta tinha esse dado.
Duas semanas depois, o arquiteto ainda não tinha essa informação. É claro que o
casal não comprou o imóvel. Mas o projeto fora aprovado sem essa especificação
e a construção segue em frente.
Mas não há lei que garanta os direitos dos portadores de
necessidades especiais? Há, claro. Lindas, no papel. Ótimas. As mais completas
e inclusivas das Américas. Só que não vigoram. Sua entrada em vigor é sempre
adiada, com prazos extraordinários e prorrogações inexplicáveis. Segundo aponta
o Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDD), o padrão
de comportamento dos poderes executivos no Brasil é ignorar as determinações
legais relativas ao tema da acessibilidade. O instituto já moveu diferentes
ações civis públicas para exigir o cumprimento da lei nessas questões. Ganhou
todas. Mas o desrespeito à cidadania e ao direito de ir e vir dos portadores de
deficiência fala (ou tilinta) mais alto — e se flexibiliza a exigência... Muito
pouco foi feito, conforme frisa o IBDD. A multa pelo não cumprimento da
decisão, se aplicada, já acumularia hoje mais de 25 bilhões de reais. Alguém
pagou?
Temos magníficos exemplos de atuação de particulares
nessa área, por dedicação pessoal e trabalho voluntário, apoiados num esforço
insano para obter fundos — desde a ABBR, que acaba de completar 60 anos
dedicada à reabilitação, já tendo beneficiado mais de 400 mil pessoas. Mas o
poder público se omite, mesmo se o IBGE aponta que 25% dos brasileiros são
portadores de alguma deficiência. Podia, ao menos, não transigir no que se
refere ao direito à igualdade e ao atendimento de necessidades específicas, das
quais a principal é a acessibilidade.
O jurista Newton De Lucca, ainda que partidário de um
Direito Penal mínimo, sugere que, no caso de descumprimento de uma decisão
judicial, se institua o crime de lesa-corte, afirmando: “A situação no Brasil
ultrapassa os limites do inacreditável, do inverossímil e alguma coisa precisa
ser feita.”
Quem deu ao Estado o direito de não respeitar suas próprias
leis?
Ana Maria Machado é escritora
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