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10 janeiro 2015

AH, AS NECESSIDADES ESPECIAIS... ANA MARIA MACHADO // O GLOBO

Lei neles

Mas não há lei que garanta os direitos dos portadores de necessidades especiais? Há, claro. Lindas, no papel

Em dezembro, a atleta Laís Souza regressou ao Brasil após quase um ano de várias cirurgias e um caríssimo tratamento com células-tronco no exterior. Em luta pela recuperação, depois do acidente que a deixou tetraplégica enquanto treinava para representar o Brasil nos Jogos Olímpicos de Inverno, deu uma entrevista na qual fez um comentário de passagem. Provocada a falar sobre o que estava encontrando em seu regresso, manifestou o que sua nova sensibilidade para a questão lhe revelava: que nossa sociedade não se preocupa em acolher portadores de necessidades especiais. Talvez se referisse a dificuldades para a mobilidade de cadeiras de rodas em calçadas ou no cruzamento de ruas ou a outras questões de acessibilidade.
Se Laís tivesse chegado alguns dias antes, talvez tivesse visto nos noticiários a cena de uma passageira cadeirante que precisou se arrastar para subir as escadas e embarcar em um avião em Foz do Iguaçu, pois não havia o equipamento necessário, obrigatório por lei. Esta semana, em Campinas, outra passageira teve de esperar mais de uma hora para conseguir desembarcar.
Certamente o comentário da atleta não estava ainda reagindo ao que só se verificou alguns dias depois e é provável que as pessoas que a cercam a tenham poupado disso: cartas de leitores aos jornais protestando contra o fato de que o Congresso aprovou uma pensão vitalícia para ela, que lhe permita sobreviver e custear parte do tratamento. O principal argumento era alegar que o valor das próprias aposentadorias e pensões, dos leitores que protestavam, está defasado e agora teriam que dividir o bolo com mais alguém. Não chegaram a dizer que ela estava furando a fila, por ser jovem. Mas estava implícita a crítica de que a moça não soubera esperar a vez. E a recusa a ver um acidente de trabalho de uma atleta.

Nesse tipo de reação, impressiona-me ver que tudo se passa muito mais no terreno do ressentimento e da reclamação do que da reivindicação do respeito a direitos. Como se cada um, todo dia, se olhasse num espelho mágico para perguntar: “Espelho meu, espelho meu, existe alguém mais coitado do que eu?” E tivesse eliminado qualquer solidariedade ou empatia na hora de ouvir a resposta. Ninguém pensa que todos somos igualmente cidadãos e contribuintes, pagando impostos da mesma maneira. Pelo menos, os que não sonegamos.
Um casal amigo, já aposentado, foi ver o lançamento de um apartamento em Itaipava, pensando talvez em se mudar para um lugar menor, de clima mais ameno. Bela planta, ótima localização, umas gracinhas de maquete com miniaturas de árvores floridas. Mas algo lhes chamou a atenção na planta. As portas pareciam estreitas demais. Se algum dia um dos dois viesse a precisar de cadeira de rodas, podia ser difícil manobrar. Quiseram se certificar das medidas exatas. O corretor não sabia informar. Nenhuma planta tinha esse dado. Duas semanas depois, o arquiteto ainda não tinha essa informação. É claro que o casal não comprou o imóvel. Mas o projeto fora aprovado sem essa especificação e a construção segue em frente.
Mas não há lei que garanta os direitos dos portadores de necessidades especiais? Há, claro. Lindas, no papel. Ótimas. As mais completas e inclusivas das Américas. Só que não vigoram. Sua entrada em vigor é sempre adiada, com prazos extraordinários e prorrogações inexplicáveis. Segundo aponta o Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDD), o padrão de comportamento dos poderes executivos no Brasil é ignorar as determinações legais relativas ao tema da acessibilidade. O instituto já moveu diferentes ações civis públicas para exigir o cumprimento da lei nessas questões. Ganhou todas. Mas o desrespeito à cidadania e ao direito de ir e vir dos portadores de deficiência fala (ou tilinta) mais alto — e se flexibiliza a exigência... Muito pouco foi feito, conforme frisa o IBDD. A multa pelo não cumprimento da decisão, se aplicada, já acumularia hoje mais de 25 bilhões de reais. Alguém pagou?
Temos magníficos exemplos de atuação de particulares nessa área, por dedicação pessoal e trabalho voluntário, apoiados num esforço insano para obter fundos — desde a ABBR, que acaba de completar 60 anos dedicada à reabilitação, já tendo beneficiado mais de 400 mil pessoas. Mas o poder público se omite, mesmo se o IBGE aponta que 25% dos brasileiros são portadores de alguma deficiência. Podia, ao menos, não transigir no que se refere ao direito à igualdade e ao atendimento de necessidades específicas, das quais a principal é a acessibilidade.
O jurista Newton De Lucca, ainda que partidário de um Direito Penal mínimo, sugere que, no caso de descumprimento de uma decisão judicial, se institua o crime de lesa-corte, afirmando: “A situação no Brasil ultrapassa os limites do inacreditável, do inverossímil e alguma coisa precisa ser feita.”
Quem deu ao Estado o direito de não respeitar suas próprias leis?

Ana Maria Machado é escritora

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