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10 janeiro 2015

CRISTIANE SEGATTO (ÉPOCA)

"Para que água, filho? Tem refrigerante no carro"

Quem deve decidir sobre sua alimentação é você. Mas a liberdade tem que vir acompanhada de responsabilidade

CRISTIANE SEGATTO
21/11/2014 15h12 - Atualizado em 21/11/2014 15h49

Crianças comendo pipoca (Foto: Thinkstock)
Era um domingo de sol, daqueles que fazem os paulistanos pular da cama e disputar qualquer cantinho de grama e sossego. O Parque Villa-Lobos estava lotado e ruidoso, mas não pude deixar de ouvir o diálogo entre um garotinho de uns 10 anos e o pai.
--- Compra água – disse o menino.
--- Para quê, filho? Tem refrigerante no carro.
Era uma conversa banal, com cenário e desfecho conhecidos. Pai gordinho, filho seguindo pelo mesmo caminho. Bom investimento em roupas e acessórios, economia no copo d’água.
Não era só isso. A objeção do adulto não parecia motivada por dificuldades financeiras -- e sim por hábito e predileção. Ainda que ele estivesse sem uns trocados no bolso naquela hora, poderia ter indicado ao filho um dos tantos bebedouros de água potável distribuídos pelo parque.
Fiquei com vontade de abrir a minha mochila e oferecer a minha garrafa d’água ao menino, mas aceitei o fato de que aquilo não era da minha conta. Numa sociedade livre, é fundamental que cada um tenha o direito de viver como queira.
Se defendemos esse direito em tantos outros contextos (liberdade de expressão, de voto, de religião, de sexo etc), por que nos sentimos tentados a interferir nessa liberdade quando o que está em jogo é a saúde?
Lembrei dessa história hoje por causa de um artigo publicado nesta semana na revista científica The New England Journal of Medicine. Dois professores americanos de saúde pública discutem se é aceitável que o governo regule o tamanho das porções dos produtos vendidos nas lanchonetes, nos cinemas, nos estádios e em outros espaços públicos.
O artigo da advogada Jennifer L. Pomeranz e do cientista especializado em obesidade Kelly D. Brownell, uma das cem personalidades americanas mais influentes, segundo uma das listas anuais da Revista TIME, foi motivado pela briga judicial que envolve a proibição da venda de copos gigantes de refrigerante nos Estados Unidos.
A cidade de Nova York foi a primeira a proibir, em 2012, embalagens de refrigerante acima de 470 ml vendidas em estabelecimentos do tipo fast food. Lojas de conveniência e supermercados não foram incluídas na norma criada pelo Conselho Municipal de Saúde. 
A decisão agradou alguns e irritou muitos. Algo previsível, principalmente numa sociedade como a americana, onde o discurso da liberdade de escolha costuma derrotar qualquer argumento de defesa da saúde e do bem-estar – tanto no plano individual quanto no coletivo. A campanha promovida pela indústria de refrigerantes influenciou a opinião pública ao ressaltar esse aspecto da cultura americana e contribuiu para o fracasso da medida.
Recentemente, os fabricantes conseguiram derrubá-la judicialmente. Os juízes da corte de apelação aceitaram o argumento de que o Conselho Municipal de Saúde não tinha atribuição legal para impor a proibição. Segundo eles, isso caberia aos legisladores.
A discussão continua. No artigo publicado na quinta-feira (20), os professores Pomeranz e Brownell defendem a ideia de que proibições desse tipo são necessárias e apontam caminhos legais para torná-las aceitáveis. “Limitar o tamanho das porções é uma fronteira promissora nas políticas de nutrição”, afirmam. “Há opções legalmente viáveis de promover a saúde pública dessa forma”. 
Vários estudos demonstram que porções maiores encorajam as pessoas a comer e beber mais. É fácil comprovar isso na prática. Você chega ao cinema e sente aquele cheirinho gostoso de pipoca. Salivando, entra na fila. Pede a embalagem pequena. Quando recebe o pedido, nota que ela cresceu e está ainda com mais manteiga e sal.


A noção de porção, que já era distorcida, é corrompida pela indústria dia após dia. Enquanto assiste ao filme, o que você faz com aqueles dois baldes de pipoca e refrigerante? Apesar de saber que não precisava daquilo tudo, simplesmente come.
Come enquanto assiste à propaganda da garrafa de refrigerante que, segundo o slogan, quem abre encontra a felicidade. Aquele mesmo comercial que diz incentivar a prática de atividade física porque mostra uns adolescentes andando de skate.

Nenhuma pessoa em pleno funcionamento de suas faculdades mentais faz uma leitura literal dessas mensagens. Todo mundo sabe que refrigerante engorda, não traz felicidade alguma e que adolescentes obesos não tem disposição para subir sequer um lance de escadas ou andar um quarteirão.

Basta olhar para os lados para saber que mais da metade dos brasileiros está acima do peso. Todo mundo já ouviu dizer que a obesidade – principalmente a infantil – tornou-se o maior desafio de saúde pública do Brasil.

As pessoas morrem disso cada vez mais. Os custos só aumentam. O SUS gasta R$ 488 milhões por ano para tratar a obesidade e 26 males decorrentes dela, como câncer, males cardiovasculares e diabetes. Essa montanha de dinheiro, que não considera os gastos individuais das famílias, das empresas e dos planos de saúde, é insuficiente. Um exemplo disso está nas filas enormes para cirurgia de redução de estômago.

A luta contra o consumo exagerado de produtos que provocam obesidade é inglória porque não ocorre no plano da razão. A publicidade lida com emoção e, nesse campo, é muito bem-sucedida. Além disso, nosso corpo pede e necessita de açúcar e gordura. Eles são gostosos e ponto final. Gostosos e, de certa forma, viciantes.

Quanto mais comemos açúcar e gordura, mais queremos comer. Quem consome com responsabilidade não engorda, mas num mundo em que a própria noção de porção foi subvertida fica difícil exercer a própria liberdade.

Afinal, quem deve controlar o tamanho das porções que você consome: o Estado ou a indústria? Hoje é a indústria. Amanhã pode ser o Estado. Não gosto de nenhuma das duas opções. Quem deve decidir sobre o seu refrigerante é você, mas liberdade se conquista com responsabilidade. Não é isso que os pais zelosos ensinam aos filhos quando discutem se eles podem chegar mais tarde em casa?

Para zelar pela liberdade é preciso também saber o fazer com ela. Isso se aplica ao terreno do consumo. Por trás da tremenda crise provocada pela obesidade há outra maior e generalizada – a crise de bom senso. Que falta faz a preferência pelo meio termo, pelo equilíbrio, pelo caminho do meio.

Criança que bebe água, que come bem e que gasta energia como toda criança deveria gastar deve ser livre para comer o que quiser. Até umas porcarias de vez em quando -- desde que seja de vez em quando mesmo e nas porções adequadas.

Quem não quer ver o Estado se metendo onde não deve, deveria ser menos passivo diante dos apelos da indústria e ter responsabilidade sobre a própria saúde e a da família. Não desestimule o seu filho a andar pelo caminho do meio. Se ele ainda pede água quando sente sede, levante as mãos para os céus e agradeça.

(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)

3 comentários:

  1. Sérgiamigo

    O corpo é um sujeito difícil e deve ser acarinhado; por exemplo quando ele nos pede vinho, deve dar-se-lhe vinho. Mas também há vezes que deve ser contrariado; por exemplo quando ele pede água - dê-se-lhe vinho.

    Abç

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  2. Sérgio é por isto e por outras coisas, que eu gosto da tua casa. Este artigo, além de muito bem explicado, bem escrito, é de uma acuidade tremenda. E sobre isto tenho a dizer que a primeira obrigação, no que respeita a saúde alimentar dos filhos, é dos pais. Comecemos por aqui porque lá diz o ditado " de pequeno é que se torce o pepino". O problema é que os pais também estão viciados na má alimentação e as razões estão aqui todas. Não vou repeti-las. De forma que, acontece muitas vezes o contrário. São os filhos que ensinam os pais. Porque, felizmente, as escolas já estão sensibilizadas para esta questão. Só que, temos, mesmo ali, ao lado, colada a nós, aquele monstro sagrado da publicidade. É enganosa e viciante. Tal como o são os doces, os refrigerantes e as gorduras. Há falta de formação e de vontade. E já estou como defende o texto." Se os pais e a sociedade não querem que o estado se meta, que enveredem estes, então, pelo caminho saudável. Ainda que custe, ainda que se faça uma asneira de vez em quando.

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  3. Onde está escrito " colada a nós", deve ler-se " colado a nós". Monstro é masculino. As minhas desculpas.

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