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01 abril 2015

ROBERTO DA MATTA // ESTADÃO



Roberto Damatta

Ser obrigado a levar em conta o mundo diário para comentá-lo é um trabalho curioso. Muitas vezes ocorrem coincidências. Os assuntos de uma crônica se rebatem nos da vida que, surpreendentemente, repete seu modo, o tema do comentário. Teriam os cronistas parentesco com os profetas?


Na semana passada, eu contei uma experiência pessoal de quase morte num avião e, hoje, estamos às voltas com o malfadado voo da Germanwings no qual o copiloto perturbado se suicida e torna-se célebre por ter levado na sua morte com hora marcada, 150 passageiros. Foi um suicídio egoísta clássico, como diria um pioneiro e mestre no assunto (Émile Durkheim), mas que teve um lado perverso, como ocorre com os assassinos que se imortalizam pela cruel disposição de se matarem matando dezenas de inocentes que nada tinham a ver com seus demônios, mas que a ele ficam ligados para sempre.


No caso do jovem Andreas Lubitz, há uma ligação problemática já que ele era profissional de uma máquina voadora a qual raramente falha sem um empurrão do inesperado, que existe em todos os seres humanos. Ademais, há a porta cuja fechadura era exclusiva de quem estava na cabine. A recusa em abrir portas, impedindo o comandante de entrar na cabine e assumir o seu papel, harmoniza-se à infeliz decisão de espatifar o avião e, com ele, o mundo e todas as suas relações que lhe dão sentido, densidade e motivos para continuar vivendo, apesar dos absurdos da existência.

As caixas-pretas dos aviões são o nosso inconsciente tecnológico. Tal como mostrou Freud para a vida psíquica, elas registram tudo. Ouvindo as caixas-pretas, descobrimos o que a consciência não registra, seja porque não quer, seja porque não pode porque, se assim fizesse, não seríamos capazes de focar em coisa alguma e a vida seria impossível, como ocorre nos casos dos transtornos obsessivos e no autismo. Essas peças que, certamente deleitariam o velho Freud, abrem um portal. Fechado na cabine, o copiloto impediu o retorno do comandante e, propositadamente, inibiu a relação com o líder o que, talvez, o impedisse de cometer o absurdo de um suicídio ligado à patologia da celebrização - essa morte individual que leva com ela os que estão em suas mãos.

A porta inexpugnável com chave ou senha tem um rico simbolismo. Dizem que no céu há uma porta controlada por São Pedro. A senha, a chave e possibilidade de entrar ou sair, permite acumular, esconder ou dissipar tesouros. Os tesouros da troca e do amor que ajudam a viver e morrer.


Mas eis que as portas secretas marcam também o petrolão brasileiro, tornando-o, precisamente por isso, o maior escândalo da história do Brasil. Refiro-me ao controle remoto eletrônico do sr. Renato Duque. Um aparelho que permitia abrir ou fechar, num clique mágico, um compartimento secreto situado dentro de um "closet", situado dentro de um quarto, situado dentro de uma invejável cobertura de um bairro fino do Rio de Janeiro, os seus tesouros modernos. Tesouros no melhor estilo do Conde de Monte Cristo obtidos, como manda o figurino das fábulas, em segredo e - quem sabe - com ajuda de algum oculto abade Farias?

Essas portas especiais que nos levam a salas secretas dentro de quartos ocultos, os quais estão escondidos em outros quartos, salas e palácios, lembram as bonecas russas e as caixas chinesas. É um não mais caber de fatos dentro de fatos, de pessoas dentro de pessoas, de cargos não honrados, englobados e bancados por outros cargos - todos vergonhosamente dissipados seja por ideologia, seja por incompetência, seja por um grau de onipotência pouco visto no caso do nosso aeroplano que tem voado em automático e, pelo visto, sem nenhum piloto, talvez porque o comandante tenha, ele próprio, se trancafiado na cabine.

Em suma, se é que isso tem suma: cai um avião na Europa e, na América do Sul, desmancham-se governos cujo símbolo são portas intransponíveis - as utopias. Cada qual com uma fechadura mais complicada que a outra. Suas chaves e senhas recusam o trabalho da aceitação dos limites que levam a responsabilidade de pilotar o que é sagrado, justamente porque é de todos.


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