Por entre ramos e sombras, crepúsculos ou marés, desenrolei o meu corpo como se fosse um rolo de papel.
Ninguém sabe, nem eu, a porção de mim que escondo.
Vesti-me de seda branca, transparente sem outro motivo se não este: sentir-me livre e viver, naturalmente, mais um dia ou uma hora que fosse.
Nem sempre as palavras dizem o que queremos ou então somos nós que já as gastámos ou, muito simplesmente, não as temos dentro de nós.
Por isso, vou desenrolar-me para fruir sem pensar.
Sou como terra lavrada e experimento-me, pé ante pé.
Não tenho pressa em beber das minhas fontes ou de inaugurar o despudor que floresce em cada um dos meus gestos.
Nas manhãs calmas de verão é que se afinam as cordas da música que tenho cá dentro. Perfumes densos e gostos novos em cada encontro que se converte numa sinfonia inacabada.
Não sou como Sísifo subindo e descendo…
Quando subo e desço, descubro novas vertentes de mim e nunca subir e descer, embora seja um gesto repetitivo, foi ou é um castigo.
Olho-me ao espelho como se me mirasse na água das fontes.
A frescura que o meu corpo exala tem cheiro a algas e ouço a música dos búzios nos meus seios redondos e firmes.
Sinto-lhe a textura e a forma quando as minhas mãos sentem o roçagar da seda.
Formam-se pregas que escondem o pulsar da carne que cede à pressão dos meus dedos.
Desnudo uma parte de mim como se fosse uma deusa e vou riscando pelas minhas pernas um percurso que os lábios não sei de quem reconhecem como sendo a fronteira para além da qual tudo é permitido, mesmo nesta nítida ausência.
A seda vai subindo e continuo a desenrolar-me diante do espelho.
As minhas cuecas são finas e transparentes, deixando que realce a púbis saliente.
Saracoteio o corpo, dando uns ligeiros passos de dança.
A seda que visto está por dentro do arco dos meu braços.
Deixo cair tudo de novo e a dança ganha ritmo e mais cadência.
Sei e sinto que o meu corpo se esgueira para além, onde se esconde o desejo ancestral de permanecer neste intragável mistério.
Olho-me nos olhos onde me afundo como se, dentro de mim, estivesse uma gruta húmida e escura.
Lá, bem no fundo, encostado à pedra, está um altar onde me volteio como se estivesse a ser possuída pelo vento.
Não faço nada, apenas me observo, esquiva, fugindo da entrega à pressa que não tenho, em tempo real, mas que na gruta se transforma e digladia.
A força e o ímpeto desvanecem a razão, cedendo à pressão dos sentidos.
Não entendo este desfasamento entre o tempo real e o sonho nem porque razão tenho que recorrer a uma gruta, quando estou diante de um espelho.
Sacudo a longa cabeleira como se fosse a executante de uma peça lírica, cujo tenor se inspira nos meus cabelos ondulantes.
Sensualmente agrestes e fulvos desmancham o preconceito que há em seduzir multidões.
A voz do tenor afrouxa quando lhe tomo as mãos.
Não, não quero permanecer neste estado de semi-inconsciência e de fascínio pelo nada.
Dou uma sacudidela no corpo e volto a olhar-me nos olhos.
Transpiro!
O vestido de seda cai direito e transparente.
Mais uma onda que avança e não resisto ao toque da seda no meu corpo.
Comprimo de novos os seios, sentindo que qualquer artista gostava de me desenhar nua em cima de um divã.
Levanto toda a seda que me cobre e ficam-me pregas de tecido enroladas no pescoço.
Não, não sou Odette nem me transformei num cisne.
Estou aqui! Sou mulher! Deito-me no chão, inesperadamente, e desenrolo-me de uma só vez. Quase que bato com a cabeça nos móveis.
Não sei onde estou nem quem sou nesta agonia que, de repente, em mim, deflagrou.
Sinto a rigidez do soalho e sento-me, de pernas cruzadas, diante do espelho.
Imponderavelmente imundo é este requiem que antecedeu a minha “estreia.”
Gosto de mim, gosto, como sou, ainda que seja uma vagabunda que vagueia nos mais díspares estados de alma.
O meu corpo é meu harém onde possuo e sou possuída pela devassidão e pelo contínuo mistério. A arte permanece nas curvas do meu corpo quando me soergo enamorada do tempo em que permaneço em mim, inaugurando todas as alvoradas, ainda que com a dor e martírio pelo meio. Deito-me na cama, rente à janela. Sinto o vento que entra e me acaricia através da seda
e permaneço muda neste estado de perfeita rendição.
Isabel Vieira 26/07/2009
Talvez você saiba de pessoas, à sua volta, que devem olhar para si mesmas apenas de alguma distância, a fim de se achar suportáveis, ou atraentes e animadoras. O autoconhecimento não lhes é aconselhável.(NIETZSCHE, 1882)
Talvez você saiba de pessoas, à sua volta, que devem olhar para si mesmas apenas de alguma distância, a fim de se achar suportáveis, ou atraentes e animadoras. O autoconhecimento não lhes é aconselhável.(NIETZSCHE, 1882)
Gostei, gostei muito do que fizeste, Sérgio! Nunca uma cascata e o barulho da trovoada encaixou tão bem em algo que tenha feito ou em momentos que tenha vivido!
ResponderExcluirFoste magnífico, Sérgio! Se eu morresse agora teria sido, talvez, a melhor homenagem que alguém me tivesse feito.
Depois, citas Nietzsche! Eu adoro esse homem!
E não digos mais nada! Fico a ouvir a música que torna ainda mais belas as palavras!
Obrigada!
Beijo abraçado
Isabel