SEGUIDORES

05 agosto 2012

SOLICITUDE: UMA JÓIA DE EROTISMO AUTO-CONCUPISCENTE





Solicitude                                                    ISABEL VIEIRA




Por entre ramos e sombras, crepúsculos ou marés, desenrolei o meu corpo como se fosse um rolo de papel. 
Ninguém sabe, nem eu, a porção de mim que escondo. 
Vesti-me de seda branca, transparente sem outro motivo se não este: sentir-me livre e viver, naturalmente, mais um dia ou uma hora que fosse. 
Nem sempre as palavras dizem o que queremos ou então somos nós que já as gastámos ou, muito simplesmente, não as temos dentro de nós. 
Por isso, vou desenrolar-me para fruir sem pensar. 
Sou como terra lavrada e experimento-me, pé ante pé. 
Não tenho pressa em beber das minhas fontes ou de inaugurar o despudor que floresce em cada um dos meus gestos. 
Nas manhãs calmas de verão é que se afinam as cordas da música que tenho cá dentro. Perfumes densos e gostos novos em cada encontro que se converte numa sinfonia inacabada. 
Não sou como Sísifo subindo e descendo… 
Quando subo e desço, descubro novas vertentes de mim e nunca subir e descer, embora seja um gesto repetitivo, foi ou é um castigo. 
Olho-me ao espelho como se me mirasse na água das fontes. 
A frescura que o meu corpo exala tem cheiro a algas e ouço a música dos búzios nos meus seios redondos e firmes. 
Sinto-lhe a textura e a forma quando as minhas mãos sentem o roçagar da seda. 
Formam-se pregas que escondem o pulsar da carne que cede à pressão dos meus dedos. 
Desnudo uma parte de mim como se fosse uma deusa e vou riscando pelas minhas pernas um percurso que os lábios não sei de quem reconhecem como sendo a fronteira para além da qual tudo é permitido, mesmo nesta nítida ausência. 
A seda vai subindo e continuo a desenrolar-me diante do espelho. 
As minhas cuecas são finas e transparentes, deixando que realce a púbis saliente. 
Saracoteio o corpo, dando uns ligeiros passos de dança. 
A seda que visto está por dentro do arco dos meu braços. 
Deixo cair tudo de novo e a dança ganha ritmo e mais cadência. 
Sei e sinto que o meu corpo se esgueira para além, onde se esconde o desejo ancestral de permanecer neste intragável mistério. 
Olho-me nos olhos onde me afundo como se, dentro de mim, estivesse uma gruta húmida e escura. 
Lá, bem no fundo, encostado à pedra, está um altar onde me volteio como se estivesse a ser possuída pelo vento. 
Não faço nada, apenas me observo, esquiva, fugindo da entrega à pressa que não tenho, em tempo real, mas que na gruta se transforma e digladia. 
A força e o ímpeto desvanecem a razão, cedendo à pressão dos sentidos. 
Não entendo este desfasamento entre o tempo real e o sonho nem porque razão tenho que recorrer a uma gruta, quando estou diante de um espelho. 
Sacudo a longa cabeleira como se fosse a executante de uma peça lírica, cujo tenor se inspira nos meus cabelos ondulantes. 
Sensualmente agrestes e fulvos desmancham o preconceito que há em seduzir multidões. 
A voz do tenor afrouxa quando lhe tomo as mãos. 
Não, não quero permanecer neste estado de semi-inconsciência e de fascínio pelo nada. 
Dou uma sacudidela no corpo e volto a olhar-me nos olhos. 


Transpiro!


O vestido de seda cai direito e transparente. 
Mais uma onda que avança e não resisto ao toque da seda no meu corpo. 
Comprimo de novos os seios, sentindo que qualquer artista gostava de me desenhar nua em cima de um divã. 
Levanto toda a seda que me cobre e ficam-me pregas de tecido enroladas no pescoço. 
Não, não sou Odette nem me transformei num cisne. 
Estou aqui! Sou mulher! Deito-me no chão, inesperadamente, e desenrolo-me de uma só vez. Quase que bato com a cabeça nos móveis. 
Não sei onde estou nem quem sou nesta agonia que, de repente, em mim, deflagrou. 
Sinto a rigidez do soalho e sento-me, de pernas cruzadas, diante do espelho. 
Imponderavelmente imundo é este requiem que antecedeu a minha “estreia.” 
Gosto de mim, gosto, como sou, ainda que seja uma vagabunda que vagueia nos mais díspares estados de alma. 
O meu corpo é meu harém onde possuo e sou possuída pela devassidão e pelo contínuo mistério. A arte permanece nas curvas do meu corpo quando me soergo enamorada do tempo em que permaneço em mim, inaugurando todas as alvoradas, ainda que com a dor e martírio pelo meio. Deito-me na cama, rente à janela. Sinto o vento que entra e me acaricia através da seda 
e permaneço muda neste estado de perfeita rendição. 




Isabel Vieira                   26/07/2009 


Talvez você saiba de pessoas, à sua volta, que devem olhar para si mesmas apenas de alguma distância, a fim de se achar suportáveis, ou atraentes e animadoras. O autoconhecimento não lhes é aconselhável.(NIETZSCHE, 1882)

Um comentário:

  1. Gostei, gostei muito do que fizeste, Sérgio! Nunca uma cascata e o barulho da trovoada encaixou tão bem em algo que tenha feito ou em momentos que tenha vivido!
    Foste magnífico, Sérgio! Se eu morresse agora teria sido, talvez, a melhor homenagem que alguém me tivesse feito.
    Depois, citas Nietzsche! Eu adoro esse homem!
    E não digos mais nada! Fico a ouvir a música que torna ainda mais belas as palavras!
    Obrigada!
    Beijo abraçado
    Isabel

    ResponderExcluir

MESMO QUE NÃO TENHA TEMPO COMENTE. SUA VISITA É
MUITO IMPORTANTE E SEUS COMENTÁRIOS TAMBÉM...
ANÔNIMOS ACEITOS, DESDE QUE NÃO OFENSIVOS. UMA COISA IMPORTANTE: AS CAPTCHAS NÃO TÊM DIFICULDADE PARA AS PESSOAS. AS LETRAS OU SÃO MAIÚSCULAS OU MINÚSCULAS, NÚMEROS SEMPRE IGUAIS. CASO NÃO ENTENDA HÁ UMA RODINHA PARA V. MUDAR ATÉ ACHAR MELHOR.OBRIGADO.