O Apregoador de Sonhos…
Não era novo nem era velho. Tinha para aí a idade em que se pode ser aquilo que temos dentro de nós. Também se desconhece o seu nome. Normalmente era ele que se dirigia às pessoas que tanto lhe ligavam como não. Era mais frequentemente ignorado. Sabe-se lá porquê. Sim, era uma pessoa diferente e igual a tantos mais. Tinha olhos verdes, esmeralda, que sobressaiam da imensa cabeleira negra. Era, por assim dizer, um homem muito belo! Andava sempre com umas calças de gaga, com sinais de serem muito usadas. Uma T-shirt branca sem mais nada completava a indumentária. Não propriamente. Esqueci-me de falar das velhas “All star”, pretas e desbotadas e de solas muito gastas. Para além desta frugalidade evidente, sobressaia a “quilómetros de distância” uma viola que o homem usava ao tiracolo, como qualquer tocador de bandas.
Era isso! Será que o
Apregoador de Sonhos era elemento de uma banda? Não se sabe! O homem não falava
de si. Só tocava. Tocava, sempre que lhe apetecia, quando à sua volta, alguma
coisa precisava de ser comemorada ou, pelo contrário, precisava de ser
reparada, quer dizer, sublimada. Tocava quando na cidade o trânsito estava
caótico e as sirenes apitavam. Tocava quando as pessoas corriam, tossiam ou
espirravam. Tocava quando as pessoas se reuniam nos cafés para falar de si e
dos outros e se falavam mal, as notas desafinavam. Só a voz é que era sempre
bela. Tocava quando morriam pessoas, quando nasciam ou quando, já adultos, se
perdiam sem encontrar razões de viver e de ser feliz. Neste caso, as notas da
viola desafinavam. Mas a voz invertia o tom das notas e era como se fosse
possível um rio correr ao contrário, da foz para a nascente e se renovassem,
para todo o sempre, os lençóis de água. Tocava quando montes de pombos arrulhavam
aos seus pés, a fim de comerem as migalhas de pão que ele lhes dava. Ninguém
sabia, ao certo, como é que uma criatura destas, aparentemente, sem eira nem
beira, conseguia arranjar comida e ainda ter que chegasse para dar aos pombos.
- Quem és tu? Perguntavam-lhe os
putos que se divertiam nos insufláveis.
O homem sorria para eles. Não sei que sorriso era esse porque preenchia-os por completo. Até parece que o sorriso era uma resposta. Conta-se que quando o apregoador de sonhos sorria, soprava uma brisa leve e perfumada que envolvia todos aqueles que dele se aproximavam. Era por isso, talvez, que as crianças não sentissem vontade de fazer mais perguntas. Há sorrisos que são respostas e, hoje em dia, do que as crianças mais precisam é de que se tenha tempo para sorrir para elas. Interessam-lhe mais os sorrisos dos que as palavras. As palavras podem ser ditas só da boca para fora, mas os sorrisos, os verdadeiros sorrisos partem sempre da alma. As cordas vocais do mundo são, a maior partes das vezes, máquinas de fazer palavras. O Apregoador de Sonhos parecia saber disto tudo. Por isso, além de sorrir, também cantava e tocava. Lá está. Tocava para celebrar ou comemorar algo que precisava de ser celebrado ou comemorada. As crianças da cidade e arredores precisam sempre de ser comemoradas.
O homem sorria para eles. Não sei que sorriso era esse porque preenchia-os por completo. Até parece que o sorriso era uma resposta. Conta-se que quando o apregoador de sonhos sorria, soprava uma brisa leve e perfumada que envolvia todos aqueles que dele se aproximavam. Era por isso, talvez, que as crianças não sentissem vontade de fazer mais perguntas. Há sorrisos que são respostas e, hoje em dia, do que as crianças mais precisam é de que se tenha tempo para sorrir para elas. Interessam-lhe mais os sorrisos dos que as palavras. As palavras podem ser ditas só da boca para fora, mas os sorrisos, os verdadeiros sorrisos partem sempre da alma. As cordas vocais do mundo são, a maior partes das vezes, máquinas de fazer palavras. O Apregoador de Sonhos parecia saber disto tudo. Por isso, além de sorrir, também cantava e tocava. Lá está. Tocava para celebrar ou comemorar algo que precisava de ser celebrado ou comemorada. As crianças da cidade e arredores precisam sempre de ser comemoradas.
Além de tocar para as crianças e em
todas as situações já apontadas, tocava também para a vendedeira de castanhas,
a D. Maria. A D. Maria tinha o seu carrinho numa das esquinas da Rua da
Liberdade. O apregoador de sonhos sentava-se, então, no lancil da calçada e
aquecia o frio da noite com baladas quentes que falavam de amor, de bálsamo e
de mar. O apregoador de sonhos sabia, melhor do que ninguém, trazer a maresia
para a cidade. Respirava-se maresia e cheiro a algas por todo o lado, até
dentro dos carros que seguiam, em fila, a cintura exterior da cidade.
Ao que parece, a D. Maria era a
pessoa que mais sabia do apregoador de sonhos. Era ela quem lhe aquecia as mãos
com as castanhas quentinhas e já descascadas. E, então, as baladas nasciam da
vendedeira das castanhas, das luzes, do preto do asfalto, dos transeuntes, dos
carros e da voz de Deus que ressoava no Tudo e no Todo, sempre e em cada
segundo que passava.
D. Maria era pobre e tinha dois
filhos. O marido tinha-a trocado por outra mulher que morava do outro lado da
cidade. O apregoador de sonhos sabia disso e dizia-lhe numa voz rasa.” Os sonhos são feitos de liberdade! As
tuas castanhas são o caminho mais fácil para lá chegar. O fumo que sai do teu
carrinho enche de esperança todos os recantos da cidade. Já vi pessoas e
encherem frasquinhos com essa esperança e a guardaram-nos dentro dos bolsos.
Talvez seja um talismã. Talvez seja uma memória esquecida, uma luz que se
reacende no cimo da escada. Talvez seja, isso, sim, uma promessa em cada
requebro da voz que ainda não foi escutada!”
O Outono prosseguia a passos largos e, por
entre o fumo que se escoava em espiral, o apregoador de sonhos tocava as mais
belas baladas. Era a música de fundo da cidade!
Depois, não esperava mais…Dizia
adeus à vendedeira de castanhas e corria a cidade de lés a lés. Até que chegava
ao pé da Sé. Era a missa das oito e, lá dentro, o órgão tocava. No entanto, o
Apregoador de Sonhos não entrava. Deixava-se ficar encostado à esquina a
saborear o Deus da rua, o Deus da noite e da imensidão do mundo. Só no fim de
todos saírem é que ele entrava. Gostava de se encontrar sozinho na intimidade
dos templos, onde também chegava o fumo das castanhas…
Por tudo isto era apelidado de
louco. E diziam à boca cheia:” Anda um
louco pela cidade!”
Mas o Apregoador de Sonhos não desistia de
tocar e de cantar. Só é pena que tão poucos o gostassem de escutar. É por isso
que os sonhos se nos esvaziam da alma como um balão a quem retiram o ar. Cai,
desfigurado, no chão da nossa imensa fragilidade.
Depois disto, em notas sumidas, mas repletas de
humanidade, o Apregoador de Sonhos desaparecia, rompendo pelo poente.
Ninguém sabia para onde iria a
seguir ou se voltava. O que restava era apenas uma suave, mas persistente
inquietação.
02-10-2010
Isabel Vieira
Gosto, sim, deste Apregoador de Sonhos que podes SER TU!
ResponderExcluirGosto, sim, desta ilustração que pode muito bem ser aquilo com que se tecem os sonhos. Mais do que serem feitos, os sonhos são tecidos em "máquinas" manuais, tal como a Penélope quando esperava por Ulisses.
Beijos