A verdadeira história da expressão ‘cuspido e escarrado’
Quase todo mundo conhece a tese segundo a qual a ancestral expressão portuguesa “cuspido e escarrado”, usada para enfatizar a semelhança de uma pessoa com outra, teve origem numa corruptela, num desvirtuamento de palavras mais elegantes promovido pela ignorância do povo. A locução original seria “esculpido em Carrara”, isto é, cinzelado no nobre mármore da região italiana de Carrara pelas mãos hábeis de um artista.
Um número bem menor de pessoas conhece a
contestação que os estudiosos brasileiros de expressões populares costumam
fazer dessa tese tão disseminada. Em vez de “esculpido em Carrara”, alegam
eles, a expressão corrompida pela fala popular foi “esculpido e encarnado”,
isso sim. O filólogo Antenor Nascentes colheu essa hipótese no primitivo
gramático português Duarte Nunes de Leão e lhe deu um belo impulso em seu
“Tesouro da fraseologia brasileira”. Nascentes é a fonte provável do sucesso
que a tese “esculpido e encarnado” faz hoje entre praticamente todos os
divulgadores da matéria, do Mário Prata do livro “Mas será o Benedito?” ao
Reinaldo Pimenta de “A casa da mãe Joana”.
Se todo mundo conhece a tese “esculpido em
Carrara” e um número menor – mas prestigioso – de pessoas prefere a tese
“esculpido e encarnado”, pode-se afirmar com segurança que quase ninguém está
familiarizado com a verdadeira origem da expressão “cuspido e escarrado”, que
de corruptela não tem nada. É bem curioso esse buraco em nossa autoconsciência
linguística, levando-se em conta que evidências acachapantes se oferecem a quem
se dispõe a pesquisar o tema. Basta olhar em volta, para outras línguas, em vez
de agir como se o mundo tivesse sido inventado na Península Ibérica.
O
primeiro registro conhecido da ligação entre o cuspe e a semelhança física
ocorre no francês do século XV, segundo o Trésor de la Langue Française, com
a expressão tout craché, “totalmente cuspido”. As razões dessa
associação têm algo de nebuloso, mas, de acordo com o mesmo dicionário,
relacionavam-se provavelmente “ao fato de que a ação de cuspir pode simbolizar
o ato da geração”, numa associação simbólica entre o cuspe e a ejaculação.
O
dicionário Oxford aposta numa explicação diferente (mas, no fundo, nem tanto
assim) para o sucesso de uma expressão semelhante em inglês, esta do início do
século XVII: spit and image(“cuspe e imagem”), que a partir do
século XIX deu origem à variante spitting image. “Talvez proveniente
da ideia”, anota o dicionário, “de uma pessoa ter sido criada a partir do cuspe
da outra, tão grande é a semelhança entre elas.”
Se
não há dúvida entre os etimologistas de que o inglês foi buscar spit and image no
francês tout craché, o mesmo se pode dizer com certeza do
português “cuspido e escarrado”. A contribuição lusófona a essa história se
limitou a acrescentar o escarro ao cuspe, como reforço expressivo. O alcance
internacional da expressão expõe a inconsistência de todas as outras hipóteses.
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