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29 janeiro 2015

CORA RONAI /// O GLOBO

O diário de Havana II

Cuba parou no tempo, e este é um dos seus maiores atrativos turísticos. Sob muitos aspectos, vive-se em Havana como se vivia no resto do mundo há 50 anos, o que está longe de ser uma alegria para seus habitantes, mas pode ser muito interessante para quem visita o país: voltamos ao tempo de uma vida mais simples e menos consumista, ao tempo em que a noite existia e era boa. Infelizmente essa simplicidade não se dá por opção existencial, mas por absoluta escassez de recursos. Havana acontece muito pelo avesso, pelo que deixou de ser feito, pelo que não foi realizado — a começar pelo seu inigualável complexo arquitetônico, a salvo da especulação imobiliária que, ao longo deste meio século, matou tantas lindas cidades latino-americanas.

Outro efeito colateral positivo da escassez: o trânsito, ou o seu oposto. Pouquíssimas pessoas têm carro, e o transporte coletivo nunca foi resolvido, de modo que as ruas, vazias, têm espaço de sobra. A qualquer hora do dia ou da noite, o tempo que se leva para chegar de um ponto a outro é só o tempo que o veículo leva para percorrer aquela distância. As avenidas são largas e surpreendentemente bem pavimentadas; problemas de estacionamento são desconhecidos.
Essa notável falta de movimento favorece, é claro, os ricos — como, há 50 anos, eram os ricos os favorecidos pelo trânsito folgado em todo o mundo. Para o resto da população, porém, a situação piorou. As fotos antigas de Havana mostram ruas cheias de automóveis, bondes e lotações. A quantidade de carros diminuiu drasticamente desde então, os bondes e lotações desapareceram, e os poucos ônibus em circulação não dão conta do serviço. Para meus amigos cubanos, esperas de uma hora, uma hora e meia por condução são parte da vida diária.
Também quase não há neons em Havana, e as placas dos poucos negócios são discretas, como eram discretas as nossas placas pintadas dos anos 1950. Não há cartazes publicitários, o que não é de estranhar, já que não há nada para se comprar; mas o bem que isso faz à paisagem! O bem que isso faz à vista! A única propaganda que se vê em Cuba é a do regime (“Patria o muerte!”, “Todo por la revolución!”); mas como tudo está em falta sempre, até esses cartazes são, felizmente, bastante escassos.
A ausência de neons e de publicidade, que tanto contribui para o charme de Havana durante o dia, empresta à sua noite, porém, um tristonho ar de Leste europeu. Nunca vi nada mais parecido com a Budapeste que visitei em 1977 do que esta Havana de 2015. As semelhanças vão além da estética. Naquela Budapeste, cidade igualmente bonita e igualmente maltratada, também faltava tudo, de alimentos a perspectivas, de papel higiênico a liberdade.
Mas essa noite tão soviética e tão antiga tem o seu encanto. Ela apaga o mau estado dos edifícios e remete ao tempo em que vivíamos a noite como uma entidade separada do dia, com mais sombras do que luzes, com mistérios e áreas reconfortantes debaixo das lâmpadas acesas. As estrelas brilham no escuro de Havana, que ainda é doce e romântico, pelo menos para quem vem de fora.
É claro que, para que a gente possa aproveitar a noite, é preciso, em primeiro lugar, um mínimo de segurança. Pois Havana me pareceu bastante segura, ainda que as pessoas com quem convivi me aconselhassem, reiteradas vezes, a tomar cuidado com a bolsa e com a câmera. A quantidade de grades, no entanto, me chamou a atenção: não há casa, por humilde ou distante que seja, cujas portas e janelas não estejam gradeadas.
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A escassez é a tônica da vida cubana. Escassez de comida, de dinheiro, de transporte, de moradia, de informação, de esperança, de liberdade. É preciso sofrer de um grau de miopia ideológica alarmante para subestimar a importância disso. A revolução, que não conseguiu distribuir riqueza, democratizou a pobreza. A sociedade é relativamente igualitária porque, com exceção dos poderosos e dos que têm contato com estrangeiros ou família morando fora, e que são muito poucos, todos são pobres. Muito pobres.
Entre os cubanos que vivem de salário, e que sobrevivem, mal e mal, graças à caderneta de racionamento, há igualdade na falta de acesso à comida e ao básico do básico, como produtos de higiene pessoal. Os produtos de que necessitam até podem ser encontrados, mas estão fora do seu alcance: uma escova de dentes, por exemplo, custa US$ 4, um quarto do salário mensal típico. Isso é como se, no Brasil, uma escova de dentes custasse R$ 197 para quem ganha salário mínimo.
Como em todas as sociedades, e em todos os níveis sociais, há pessoas mais empreendedoras do que outras — mesmo em pesos cubanos. Na esquina da casa em que me hospedei, uma velhinha vende suspiros a cinco pesos. Não é nada, não é nada, ao fim do dia ela tem mais do que os outros velhinhos que, timidamente, pedem esmola aos turistas.
Ainda assim, as únicas crianças que se veem nas ruas são crianças bem cuidadas e uniformizadas, indo ou voltando da escola; ou, mais tarde, essas mesmas crianças, brincando umas com as outras. Não vi crianças fazendo malabarismo nos sinais nem pedindo dinheiro ou comida.

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