O limite da liberdade de expressão
Qualquer limite à liberdade de expressão é
o limite da lei. O que passar disso, tenha certeza, é vigarice
Quando alguém começa a colocar
aspas antes e depois de liberdade de expressão é porque alguma coisa está
errada. É alguma coisa parecida com a “democracia relativa”, engenhosa criação
da mente castrense do general Ernesto Geisel- que equivale mais ou menos a uma
quase gravidez , alguma coisa produzida por um descuido, uma coisa que deveria
ter sido evitada, mas como não foi, acabou produzindo resultados que desmoronam
os nossos edifícios de certezas e atrapalham a pureza do discurso. Nada mais
reacionário do que alguma coisa que pode ser feita, mas só pela metade, por
exigência da moral, dos bons costumas e da hipocrisia politicamente correta, a
grande praga comportamental desta primeira metade de século.
O caso do massacre do Charlie Hebdo
conseguiu produzir uma verdadeira teratologia de opiniões, mais chocante do que
o traço irreverente que algumas das piadas pecaminosas dos gênios metralhados
pelo fundamentalismo islâmico. Mas eles abusaram…É sempre assim que começa a
relativização dos neo -iluministas que acham as piadas uma grosseria inominável
e uma ofensa “às crenças do outro”, mesmo desconsiderando que na cultura do
“outro" as mulheres, os homossexuais e os infiéis não têm direito sequer à
existência. Decapitar infiéis, por exemplo, deve ser uma característica
respeitável de sua cultura. A suposta “islamofobia” (não importa que o Charlie
Hebdo seja também catolicofóbico, militarofóbico, politicofóbico, ladrofóbico,
autoritáriofóbico e tudo mais que termina em fóbico) do pasquim humorístico
francês é um pecado tão terrível que chega a justificar os 12 assassinatos. O
psicanalista e escritor Contardo Calligaris escreveu em sua coluna semanal na
Folha que na verdade o semanário humorístico atacado pelos fundamentalistas é
culpado de “cretinofobia”:
“Charlie Hebdo” é uma publicação
cretinofóbica, porque acha cretino qualquer um que adira a uma crença sem a
capacidade de rir dela e de si mesmo enquanto crente”. Aqueles que não se
aventuraram a trilhar o espinhoso caminho de questionar as próprias razões do
fundamentalismo religioso como fonte autônoma de violência, foram buscar
atenuantes para a ação dos terrorismo: a primeira e suprema razão, alicerçada
num antiamericanismo pueril e um pouco demente, esgota-se no próprio
maniqueísmo mental; as outras razões agarraram-se a considerações estéticas
sobre o mau gosto e a violência dos desenhos e das piadas, como se os fuzis
kalishnikov fossem uma instância superior e definitiva de crítica de arte. E
não faltaram, claro, os saltitantes filósofos oficiais do poder nacional,
adeptos do “controle social da mídia” (que agora, para despistar, chamam de
regulação econômica), que usaram a irreverência sem limites do humor do Charlie
Hebdo, para colocar os seus cavaletes partidários no caminho da liberdade de
expressão. Cada cavalete é um “mas”, que deve ser saltado pela mídia, a quem
pretendem disciplinar, dizendo que a liberdade de expressão tem que ter
limites. Quais? Os que eles e seus “coletivos” definirem, claro.
Qualquer limite à liberdade de
expressão é o limite da lei. O que passar disso, tenha certeza, é vigarice.
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